Um marco na estruturação dos Serviços de Saúde Pública em Portugal
– O Regulamento de 1901
Jorge Fernandes Alves ‐Licenciado e doutorado em História. Professor Catedrático na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço, Memória. Investigação e publicações na área de História Contemporânea., nomeadamente na história da saúde (Ricardo Jorge, abordagens a instituições hospitalares) e em outras áreas (emigração, história empresarial).
Medicina da coletividade, assim designava J-Ch. Sournia a saúde pública, a qual, visando a saúde e o bem-estar para toda a população, representaria uma rutura com a medicina milenar, de tradição hipocrática, representada esta pela díade médico-doente: enquanto, na ótica tradicional, o médico cura, a saúde pública previne, equacionando-se diferentes formas de encarar os nexos causais da doença.
Nesta medida, a saúde pública é fruto da modernidade, emergente com a atribuição ao Estado de responsabilidades mais alargadas do que a guerra e a segurança. Não é todavia difícil reconhecer que as práticas conducentes à saúde pública existiram muitos antes de surgir esta designação, que exprime, em síntese, um novo olhar sobre a saúde e a doença. Quando surge, então, em Portugal a saúde pública?
Podemos falar de uma pré-história da saúde pública, que, entre outros tópicos, nos poderia levar, por exemplo, às canalizações de água do tempo romano ou às práticas de higiene que as posturas municipais impunham desde os tempos medievais.
Podemos falar de uma proto-história, com a emergência da própria designação “saúde pública”, que, folheando a legislação, se encontra, pelo menos, em 3.7.1813, a propósito da fiscalização de embarcações, verificando-se, a seguir, perante a ameaça de peste que grassava no Mediterrâneo, a criação (efémera) da Junta de Saúde (28.8.1813). O uso da expressão generaliza-se nesse âmbito e ganha estatuto nas Cortes Constitucionais de 1821, através da criação da “Comissão de Saúde Pública”, que, entre outros problemas, se preocupou com a Instituição Vacínica, com o exercício das profissões de saúde e tentou discutir um “sistema uniforme”. A criação, em 1837, de um Conselho de Saúde Pública, revela uma preocupação clara, mas as formas de intervenção eram ainda muito incipientes.
Foi com a revolução bacteriológica dos finais do século XIX que se desenvolveram novas formas de atuação nos países mais avançados. A ameaça de cólera em 1884, que grassava já em França e Espanha, criouem Portugal a oportunidade para se divulgarem as novas formas de ver o problema: às medidas do cordão militar na fronteira ordenadas pelo governo, responde o jovem Ricardo Jorge com as suas conferências sobre Higiene e surge, do interior da Escola Médico-Cirúrgica, uma publicação periódica intitulada “A Saúde Pública – Hebdomadário de Higiene”. Posteriormente, as duas grandes cidades – Lisboa e Porto, criavam os Serviços Municipalizados de Saúde e Higiene. Trabalhava-se também num projeto de “regulamento sanitário”. Mas tudo andava de devagar. Por exemplo, uma proposta parlamentar de 1891para tornar obrigatória a vacinação e a revacinação antivariólica só foi aprovada em 2.3.1899, sendo necessário apresentar dados que mostravam uma mortalidade de 100 por 1000 habitantes, e no Porto 120 por 1000, sendo estas cidades as mais atingidas por este mal na Europa.
Entretanto, nos meados de 1899, ocorria a peste bubónica no Porto, cujo diagnóstico se deveu a Ricardo Jorge, então responsável pelos Serviços Municipais de Saúde e Higiene. A oposição popular e da imprensa com que se viu confrontado (incluindo ameaças de morte e apedrejamentos à sua residência), em função da declaração da peste e das medidas consequentes adotadas pelo governo (com cerco militar para isolamento da cidade), levou-o a pedir transferência para a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Por sua vez, o governo progressista de José Luciano de Castro foi violentamente atacado, quer por republicanos, quer pelos regeneradores (então liderados por Hintze Ribeiro). Foi nestas circunstâncias de mais uma epidemia que o governo central decidiu avançar com a reforma sanitária há muito adiada e chamar para o efeito Ricardo Jorge, pois, embora perseguido pela opinião pública portuense, vinha aureolado pelos seus textos sobre higiene, pela organização sanitária municipal e pela capacidade de diagnosticar a peste bubónica, que se julgava há muito erradicada da Europa. A sua chamada à administração central tinha ainda o simbolismo de legitimar o saber médico face à contestação social de que fora alvo. É, portanto, perante a situação de uma crise grave, em que o sistema instalado não dá a resposta adequada, que se criam as condições políticas para a reforma sanitária, que será traduzida em sucessivos diplomas.
O primeiro passo foi a criação da Direção-Geral de Saúde e Beneficência Pública, por decreto de 4.10.1899, cujo preâmbulo reconhece a necessidade de uma «eficaz organização dos serviços de saúde» como fórmula preventiva, depois de uma longa inércia e crença na «imunidade de longos anos e na eficácia dos regulamentos de sanidade marítima que nos poupariam a epidemias exóticas». Tratou-se, então, de assegurar a especialização do serviço e unidade na direção técnica e administrativa no âmbito do ministério do Reino. Assim, a nova direção-geral (com duas repartições, a de saúde e a de beneficência) seria obrigatoriamente liderada por um médico higienista. Por sua vez, o chefe da repartição de saúde, igualmente médico, exercia também «as importantes e indispensáveis funções de inspetor geral dos serviços sanitários, para que em todo o reino os fiscalize e vigie». Foi para estas funções que foi chamado Ricardo Jorge, que se transferiu para Lisboa em meados de Outubro, pois a direção-geral foi entregue a João Ferraz de Macedo, um médico lisboeta.
Para melhor articulação, entre a componente administrativa e técnica, era criado um «corpo consultivo, que não só coadjuve com o seu conselho o governo nos variados assuntos de saúde e higiene, mas tenha também a iniciativa da proposta dos melhoramentos». Surgia assim o Conselho Superior de Saúde e Higiene Pública.
Novo decreto de 28 de novembro de 1899, já fruto da reflexão e propostas da direção-geral e da discussão no Conselho, lembrava a epidemia de peste bubónica do Porto e a importância de se ter uma organização de defesa sanitária: todos os sacrifícios em favor da saúde pública seriam «obra redentora de vidas», além de «protetores dos interesses públicos e privados», sendo, por isso, uma «obrigação primacial da administração e da fazenda pública». E considerava-se que tinha chegado «o momento oportuno e necessário para nós ensaiarmos uma reorganização estável e profícua dos serviços de saúde pública», de forma a assegurar uma defesa sanitária normal e uma luta antiepidémica:
O mecanismo sanitário tem como roda-viva o médico; a proposta contenta-se com os existentes, não cria novas categorias. Encontrou esta entidade profundamente portuguesa, e provadamente meritória, do facultativo de partido; consagrou-lhe o préstimo e ampliou-lhe os foros. Subdelegados e delegados de saúde são médicos municipais. Toda a série de médicos sanitários vai hierarquizada em subordinação progressiva até à inspeção geral e à direção geral, assegurando-se a sua unidade técnica e administrativa.
Mas, em função do desenvolvimento das novas técnicas sanitárias, já não bastaria o médico para completar o sistema, tal como acontecia em Inglaterra, onde cidadespopulosas tinham um engenheiro sanitário, fiscais de salubridade, inspetores para cada ramo de aplicação e diretores de laboratório, todos com uma formação específica. Neste sentido, se criava agora o Instituto Central de Higiene, centro de investigação e escola de formação para sanitaristas, compreendendo estatística sanitária, laboratório, museu, epidemiologia, vacinação e desinfeção e organização de cursos, indispensáveis para acesso a funções no sistema sanitário:
A mão do higienista está hoje armada de um material de investigações e combate. Não é só com palavras, mas principalmente com obras que se previnem e debelam os males físicos. A reforma assinala essa aquisição paulatina de instrumentação, desde o simples material de desinfeção até ao laboratório e ao hospital de moléstias zimóticas.
E definia-se o campo de ação, que passaria por estender a todo o território a nova disciplina sanitária exigida pela higiene, abrangendo áreas antes sob diferentes tutelas, como era o caso da sanidade urbana, da rural e da marítima:
A administração sanitária tem por fim vigiar e estudar tudo quanto diz respeito à saúde pública, à higiene social, à vida física da população, e promover as condições da sua melhoria. Extensa e complexa, não era abrangível num único diploma. O presente decreto formará o ato fundamental, a lei fixadora da organização geral da saúde publica do reino. Dele promanará a serie de regulamentos de toda a ordem, referentes quer às múltiplas atribuições da higiene pública, quer ao exercício dos seus funcionários e corporações. O conjunto destas disposições sucessivas constituirá o nosso código sanitário.
Os serviços sanitários organizavam-se em externos (com regulamento geral de sanidade marítima e internacional) e internos (com regulamentos a elaborar para: estatística demográfico-sanitária; prevenção e combate de moléstias infeciosas; higiene da indústria e do trabalho; salubridade dos lugares e das habitações; inspeção das substancias alimentícias; polícia mortuária; exercício médico-profissional; quaisquer outras aplicações de higiene pública). Previa-se a criação de laboratórios de higiene e postos de desinfeção nas capitais de distrito, em cujos governos civis deveria também existir uma repartição de saúde para expediente e estatística, mas também um engenheiro para inspeção da salubridade, um agrónomo e um veterinário para a fiscalização alimentícia. Lisboa e Porto, por razões de dimensão, teriam organização especial.
Em 22 de fevereiro de 1901, já após eleições e através do novo chefe de governo e ministro do Reino, o regenerador Hintze Ribeiro, era apresentada à Câmara dos Deputados uma nova proposta para remodelar a Direção Geral de Saúde e Beneficência, que, em continuidade das medidas anteriores, iria valorizar o protagonismo de Ricardo Jorge. A filosofia geral continuava a ser a de lutar pela higiene e aprofundar a implementação do sistema sanitário, conforme o preâmbulo da proposta:
A tutela higiénica cada vez desperta mais a vigilância dos poderes públicos. De função rudimentar ou extemporânea passou a assíduo cuidado e a obrigação continua; os homens de Estado sentem como nunca o peso das palavras tantas vezes citadas de Disraeli, quando lhes impunha, como primeiro mandamento, velar pela saúde do povo.De dia para dia se avigora mais o conceito de que a sanidade pública é um dos altos estalões por onde se poderá aferir a grandeza social de um país.
O projeto sofreu pequenas alterações no parlamento, mas da decisão parlamentar resultou a Lei de 12.6.1901, que autorizava-se o governo a reorganizar os serviços sanitários. Na sequência desta Lei, viria a publicação, em 24.12.1901, do Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, extenso diploma que procurava dar organização (atribuições, competências e funcionalidade) a todos os elementos dos serviços e que se tornou na matriz do novo sistema sanitário. Considerava-se que a «reorganização da sanidade oficial» encerrava a sua fase embrionária para entrar numa «fase definida de estrutura e ação», respondendo às circunstâncias do tempo, exigências científicas e condições administrativas e económicas do país.
O Regulamento apresentava no total 347 artigos, dos quais 316 artigos se debruçavam sobre saúde pública, revelando-se assim o caráter secundário da beneficência neste diploma, prenunciando que esta ligação entre saúde e beneficência se revelava desadequada, mas só com a República, em 1911, se viria a verificar a separação.
Estava, enfim, definida a estrutura burocrática dos serviços de saúde pública em Portugal, cujo desenho, deliberadamente centralista, procurava seguir os modelos europeus mais avançados (Inglaterra, Alemanha e, sobretudo, França), fazendo sobressair a autoridade científica dos sanitaristas na administração pública e que, naturalmente, colocava o médico nos centros de poder das políticas de prevenção. Novos regulamentos sairiam posteriormente, acrescendo ao conjunto de diplomas normativos que, no seu conjunto, constituiriam um «código sanitário», como se dizia, respondendo de forma dinâmica às necessidades emergentes: em 23.8.1902 regulavam-se os serviços de inspeção e fiscalização de géneros alimentícios; em 30.8.1902, os serviços profiláticos da tuberculose; em 19.9.1902, a inspeção sanitária escolar; em 14.2.1903, a salubridade das edificações urbanas. Mais difícil seria levar ao terreno todos os serviços previstos!